Considerações Éticas
sobre o “Excesso Terapêutico”
Morte Esperada
Ao estoicismo de Sócrates
perante a morte opõe-se o ressentimento do homem moderno que não
consegue prolongar a vida a seu bel-prazer. Esta atitude merece uma
reflexão profunda para que se possa formular um princípio geral para
uma ética rosacruz.
É preciso ter em conta, em
primeiro lugar, que a medicina alivia a dor e ajuda a curar mas não faz
desaparecer a doença nem a morte. Por outro lado, para além de todas
as justificações possíveis, a morte é uma experiência profundamente
humana que deve ocorrer na intimidade É este princípio que deve
nortear todas as formas de tratamento capazes de privar a pessoa de
viver, por si, a sua morte.
O caso dos doentes em situação
extrema apelam para a nossa especial atenção.
Max Heindel alerta para a
situação de um enfermo que, amputado de uma perna, sofreu atrozmente
até que fosse retirado do membro amputado um objecto perfurante que
inadvertidamente lhe tinha sido introduzido após a intervenção cirúrgica1.
Augusta Heindel chama a atenção
para o sofrimento infligido ao espírito pelas operações de
embalsamamento no período crítico de 72 horas após a morte2.
Estes dois exemplos levaram-nos a investigar uma situação intermédia,
frequente, relacionada com procedimentos médicos em doentes
inconscientes que não recuperaram a consciência. A situação mais bem
observada foi a do recurso à alimentação enteral. É uma forma de
alimentação artificial que coloca o alimento no aparelho digestivo por
via nasogástrica: introduz-se um tubo de plástico pela cavidade nasal
até alcançar o estômago. Considera-se geralmente aceitável a entubação
sem anestesia em doentes inconscientes.
Em todos os casos observados
verificou-se que este procedimento foi muito mal tolerado. No debate
moral sobre esta forma de alimentação a atenção deve centrar-se,
portanto, na sensibilidade do doente em estado de coma ou vegetativo.
Em alguns casos, devidos
talvez à posição, tosse e ou dificuldades respiratórias, a sonda
desviou-se para as vias aéreas. Esta situação deu origem a sucessivas
tentativas para a posicionar correctamente no estômago.
Não sendo utilizado
qualquer anestésico para instalação da sonda nos doentes observados,
todos com reflexos diminuídos, verificou-se que o desconforto inicial
deu lugar a uma dor profunda e permanente. Em vários casos o sofrimento
prolongou-se durante vários anos depois do falecimento. Um deles
persiste após mais de cinco anos depois da ocorrência.
Incapazes de qualquer
manifestação das faculdades superiores (conhecimento, afectos, consciência),
estes doentes não podem dar resposta reconhecível e coerente aos estímulos
e mensagens que lhe são enviados. Se há, por vezes, movimento dos
olhos ou das mãos, e até mostram sensibilidade auditiva, a verdade é
que são incapazes de reagir continuamente a esses estímulos de modo a
dar a ideia de alguma intencionalidade.
Esta realidade permite-nos
concluir que a ausência de sinais físicos não equivale,
necessariamente, à falta de sensibilidade e de vida psíquica.
Estes casos levantam
interrogações. Como tratá-los? Que cuidados específicos se devem ter
com eles? A resposta tem de assentar na determinação prévia do seu
estatuto humano. Estes doentes não estão mortos: apenas a sua dependência,
bem como a sua incapacidade de expressão, são totais.
O debate principal em relação
a este tipo de doentes centraliza-se, portanto, na alimentação e
hidratação artificiais.
Se, do ponto de vista ético,
o uso dos modernos recursos da medicina é claramente aceite no plano
das ideias, as dificuldades surgem quando, na prática, se têm de tomar
decisões sobre a vida ou a morte.
Poderá objectar-se então
que, sendo o alimento e a hidratação parte dos cuidados mínimos a ter
com todos os seres humanos, o respeito pela vida exige que se continue a
alimentar os doentes graves, mesmo artificialmente, incluindo os que estão
em coma irreversível.
Todavia, há aqui um
flagrante erro de raciocínio.
É certo que o Evangelho impõe
a regra de “não matar” (Êx 20, 13; Dt 5, 17). Mas esta proibição
não basta para ajuizar moralmente a situação do doente terminal. Não
se trata, aqui, de fornecer alimentos e descedentar o doente. Na
realidade, não é uma forma de alimentação natural. O que existe é
unicamente uma modalidade de tratamento médico.
Neste sentido, afigura-se
que prolongar a vida do corpo físico, fornecendo-lhe alimento, mesmo
quando a vida do veículo denso já não faz sentido, é um “excesso
terapêutico”. O único resultado será a manutenção precária,
penosa e inútil, do corpo — o que se afigura um preço demasiado
elevado que se impõe ao espírito.
Do nosso ponto de vista, uma
terapia só obriga moralmente se os benefícios forem superiores aos
inconvenientes para o paciente. E não se podem medir os benefícios
unicamente pelo prolongamento da vida física: é preciso ter em conta o
bem espiritual da pessoa.
É claro que não se pode
estabelecer a suspensão da alimentação/hidratação como regra geral
para todos os doentes em estado vegetativo. Poderia cair-se no erro da
eutanásia, isto é, de provocar a morte a uma pessoa com o objectivo de
a poupar do sofrimento. Nem tão-pouco se deve ceder a orientações políticas,
ideológicas ou correntes de pensamento que põem de lado os doentes
privados de faculdades mentais ou da possibilidade de os manifestar. Nem,
ainda, se podem avaliar os benefícios acima referidos numa perspectiva
daqueles que têm os doentes a seu cargo e com base no critério
subjectivo da “qualidade de vida”3.
É certo que, ainda não há
muito tempo, estas decisões se baseavam essencialmente na ideia de
“qualidade de vida” do paciente. Mas as complexidades da vida
moderna tornam a definição deste conceito extremamente difícil e
pouco consensual.
Do ponto de vista da
filosofia rosacruz, mais importantes que os consumos materiais são os
“consumos não materiais” da pessoa, isto é, a cultura e a satisfação
das necessidades espirituais, psicológicas e relacionais. De facto, a
moral rosacruz não se interessa apenas pela protecção do corpo físico
nem pelas agressões que põem em perigo a vida física. A “qualidade
de vida” não pode justificar qualquer decisão para prolongar ou
abreviar a vida física. O critério de qualidade de vida torna-se até
perigoso. Serve, por exemplo, para justificar a eliminação de formas
de vida embrional — como vimos recentemente —, e outras barbaridades.
O compromisso da ética
rosacruz deve ser mais ambicioso. Tem de alcançar tudo o que possa
estar ao serviço do ser humano.
Por isso, o mero
prolongamento irracional da existência física não pode ser o critério
para legitimar uma determinada terapia. É evidente o desvio
desumanizador de que ele se reveste. Têm de ser apreciadas as condições
em que essa vida se vai prolongar, condições essas que devem ser
vistas, antes de mais, na perspectiva do paciente e, na medida do possível,
por ele próprio.
Considerando, assim, a
inutilidade dos tratamentos referidos, sempre que o conceito de
utilidade/inutilidade não aponte para a sobrevivência com hipóteses
de comunicação, a suspensão dos tratamentos não é uma forma de
causar a morte: esta será, isso sim, fruto de um processo natural e
devido às condições irreversíveis do doente.
As duas maneiras de encarar
a experiência da morte, citadas no início do artigo, a de Sócrates e
a do homem moderno, relacionam-se com a auto-estima da pessoa no
primeiro caso; e com o sentido de pertença à sociedade no segundo. O
ponto de vista teológico também não é muito mais enriquecedor apesar
de fortemente argumentativo. Não permite sequer compreender a vivência
da morte e muito menos vivê-la antecipadamente. Todos estes pontos de
vista precisam de uma reconfiguração dentro de uma cultura em que o
valor humano está obscurecido devido à incompreensão da finalidade da
vida e das condições depois da morte.
É preciso situar o problema
ético relacionado com morte no contexto de um discurso aceitável pela
racionalidade humana longe das arbitrariedades, familiares ou não, ou
de quaisquer interesses biotecnológicos.
A filosofia e a moral de
horizonte rosacruz têm virtualidades que ajudam a reconsiderar a pertinência
do estudo deste assunto. Permitem pensar a morte em si mesma, mesmo num
contexto difícil como o dos nossos dias.
O que se pretende com esta
proposta de trabalho é ver o problema discutido no seu contexto amplo,
pensado correctamente, de modo a prover as pessoas com argumentos sólidos
que sirvam para desatar as consciência amarguradas pelas indecisões típicas
destes momentos fundamentais da vida. Não se pode mascarar a verdade
desagradável nem apresentar como verdade um erro agradável. Nenhuma
corporação detém o monopólio da reflexão sobre o tema. O exame
moral pertence a todos. Cada um de nós tem o dever de apreender os
problemas éticos relacionados com a morte com a liberdade de analisar
as reflexões morais dos outros, caso tenham algum mérito.
Fonte: "site" da Fraternidade Rosacruz de Portugal em www.rosacruz.pt
Notas:
1 Max Heindel, Conceito
Rosacruz do Cosmo.
2 Augusta Heindel, O
Outro Lado da Vida.
3 Do ponto de vista da
população portuguesa, a “qualidade de vida” está claramente
associada ao desafogo material.